No último dia 06, o Poder Executivo enviou ao Congresso um projeto de regulamentação da reforma do regime previdenciário dos servidores públicos, aprovada em 2003. Trata-se de uma compensação ao setor financeiro pelo aparente fracasso de suas aspirações de liquidação do sistema de proteção social da Constituição de 88.
O PLC 1992 segue todas as diretrizes defendidas pelo lobby financista reunido no Plano Diretor do Mercado de Capitais (PDMC). De maneira menos drástica, faz com o dinheiro do regime dos servidores o que as entidades reunidas no PDMC querem fazer também com o do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), que abrange os trabalhadores cobertos pelo INSS.
Ruim para os servidores, ruim para as contas públicas
O projeto faz cair por terra a idéia de que a reforma de 2003 serviria para corrigir disparidades entre as aposentadorias e pensões do serviço público e aquelas pagas pelo INSS, ou que se prestasse a conter gastos com benefícios de valor elevado. Ele amplia os problemas que aquela reforma supostamente vinha remediar.
É verdade que o projeto limita os proventos pagos pelo regime do funcionalismo ao teto do INSS. Ao fazer isso, entretanto, o PLC 1992 limita também ao mesmo valor a incidência de desconto previdenciário sobre os vencimentos do funcionalismo. Hoje, o governo federal desconta 11% (R$ 550) do salário de um servidor que ganhe R$ 5.000 para pagar-lhe, no futuro, uma aposentadoria de 3 ou 4 mil reais (já que a mesma reforma de 2003 mandou calcular o valor desta pela média das remunerações recebidas durante toda a vida). Com a mudança proposta, poderá descontar do salário deste mesmo servidor no máximo 11% (R$ 330, mais ou menos) do teto do INSS (pouco menos de R$ 3.000) para pagar-lhe uma aposentadoria de valor muito próximo (os mesmos R$ 3.000).
Esta alteração é ruim para os cofres públicos, tanto a curto quanto a longo prazo. A longo prazo porque, como vimos, a redução da despesa futura com o pagamento de benefícios será menor que a queda da arrecadação (presente e futura). A curto prazo, porque a arrecadação presente cairá, mas o gasto atual com o pagamento de aposentadorias e pensões não. Como os atuais aposentados e pensionistas do setor público conservarão o direito ao valor de seus proventos, o governo terá que gastar mais para cobrir a diferença entre o total desses proventos e o que recolhe sobre o contracheque dos funcionários ativos.
Roda da fortuna
O sistema previdenciário do funcionalismo tem duas partes (servidores e governo). O dinheiro gasto por uma é revertido à outra: os servidores descontam para o governo, o governo paga os servidores aposentados. Onde está a mágica capaz de fazer que os dois lados percam dinheiro?
A resposta é a mesma de várias indagações semelhantes que se podem fazer desde o início do Plano Real: setor financeiro. O que o PLC 1992 faz é incluí-lo como terceiro participante da relação, transferindo dinheiro tanto dos cofres públicos quanto dos contracheques do funcionalismo para fundos de capitalização e corretoras de valores mobiliários. Seu Artigo 15 prevê que “a, provisões e fundos dos planos de benefícios, resultantes das receitas previstas no art. 10 desta Lei deverá ser realizada mediante a contratação de instituições autorizadas pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM para o exercício da administração de carteira de valores mobiliários” e que a aplicação desses recursos “será feita exclusivamente por meio de fundos de investimento atrelados a índices de referência de mercado”. Em linguagem corrente, isto significa que: a) o governo fica obrigado a aplicar na bolsa de valores o dinheiro arrecadado para, supostamente, custear aposentadorias de seus funcionários; b) além disso, fica obrigado a contratar intermediários (corretoras privadas) para realizar e administrar essas aplicações. administração dos recursos garantidores
Para supostamente garantir ao funcionalismo uma aposentadoria maior que aquela que lhe será paga pelo governo, o projeto de lei transfere a esses fundos privados o desconto sobre a diferença entre o salário do servidor e o teto do INSS. Voltando ao exemplo anterior, o servidor que recebe R$ 5.000 e que hoje desconta R$ 550 para o governo passará a descontar R$ 330 para os cofres públicos e os restantes R$ 220 (ou um pouco mais, ou um pouco menos, dependendo das condições estabelecidas pelos fundos) para esses fundos de capitalização. Um servidor que ganha R$ 10.000 descontaria para o governo os mesmos R$320, mas o valor destinado aos fundos de capitalização passaria para R$ 770.
Os fundos e corretoras disporão desse dinheiro – num volume de dezenas de bilhões de reais – sem sequer informar ao servidor quando ele receberá, no futuro, a título de aposentadoria: de acordo com a estruturação dos planos de benefícios proposta no PLC 1992, tanto ele quanto o governo contribuirão sobre um percentual determinado de seu salário (contribuição definida), mas o valor de sua aposentadoria ou pensão dependerá do rendimento que o fundo de capitalização lhe conceder (benefício indefinido). Novamente, não são apenas os servidores que perdem, mas também os cofres públicos: o governo terá que contribuir para os planos de capitalização com um percentual de até 7,5% da remuneração do servidor (o que não ocorre hoje).
Na exposição de motivos do PLC 1992 – subscrita pelos ministros da Fazenda, Guido Mantega; Planejamento, Paulo Bernardo; e Previdência, Luiz Marinho – , esses ministérios, responsáveis por sua apresentação à presidência da República, admitem que “a mudança de regime terá um impacto negativo nas contas públicas no curto prazo, na medida em que o governo deixará de receber a contribuição sobre a parcela da remuneração do servidor entrante que ultrapassar o teto, e terá um gasto adicional, na medida em que passará a contribuir para o regime complementar, capitalizando reservas individuais para os servidores”.
Mais adiante, admitem o real objetivo do projeto ao assinalar que “o porte e o elevado potencial de acumulação de recursos deste novo investidor institucional poderá estimular a demanda por ativos no mercado financeiro e de capitais, viabilizando o fortalecimento do mercado secundário de títulos e promovendo maior liquidez, requisito essencial para o desenvolvimento desses mercados.”
Patrimonialismo de mercado
A festa dos bancos e corretoras começa antes mesmo da implantação do novo sistema. Para centralizar a arrecadação das contribuições que serão repassadas a eles, o projeto cria uma entidade chamada Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal (Funpresp). De acordo com a exposição de motivos elaborada pelos três ministérios, “a implantação da FUNPRESP implica em custos iniciais significativos decorrentes da contratação de pessoal, aquisição de softwares, hardwares, consultorias contábeis e atuariais, etc”. Essas “consultorias contábeis e atuariais” são prestadas, via de regra, por empresas vinculadas ao próprio mercado de capitais. Para remunerá-las – segue a exposição de motivos – , “o Projeto de Lei autoriza, então, no seu art. 26, que a União realize um aporte inicial de recursos no montante de até 50.000.000,00 (cinqüenta milhões de reais) a título de adiantamento de contribuições futuras.”
Além disso, o projeto cria mais um nicho de promiscuidade entre a administração de recursos do Estado e os interesses do setor financeiro: a diretoria-executiva da Funpresp, que terá em suas mãos o poder de distribuir entre diferentes fundos e corretoras os recursos arrecadados pela entidade. O controle desses cargos é muito atraente, portanto, para os bancos e corretoras – que procurarão colocar neles, a exemplo do que já fazem em órgãos como Banco Central, CVM e BNDES, seus executivos e homens de confiança. O PLC 1992 – que regulamenta a reforma que ia acabar com as aposentadorias de marajá no serviço público – garante aos diretores-executivos da Funpresp remuneração “em valores compatíveis com os níveis prevalecentes no mercado”, que pode chegar até 30 mil reais.
Além da “modernidade” neoliberal consistente numa mal disfarçada privatização de parte do sistema previdenciário dos servidores, as entidades do mercado financeiro (bancos, corretoras, consultorias) recorrem também a formas mais antigas e tradicionais de apropriação privada de recursos públicos, como contratos administrativos e altos salários. O “adiantamento” de R$ 50 milhões para a contratação de consultorias é justificado pelos ministérios da Fazenda, Previdência e Planejamento sob a alegação de tratar-se de prática corrente de entidades de previdência privada. A remuneração da diretoria da Funpresp, com a velha história da “administração pública gerencial” – como se o serviço público devesse funcionar nos moldes da grande empresa privada. Resta saber o que os arautos da “administração gerencial”, como o sr. Bresser Pereira, e os “especialistas contas públicas” que pregam o desmanche da Previdência, como os srs. Raul Velloso e Fabio Giambiagi, diriam de uma empresa altamente endividada e com boa parte de seus gastos correntes comprometidos que decidisse usar dinheiro de sua folha de pagamento para jogar na bolsa. É isso que eles propõem para o Estado brasileiro e é o que o governo está fazendo.
Henrique Júdice Magalhães é jornalista, ex-servidor do INSS e pesquisador independente em Seguridade